quinta-feira, 27 de junho de 2013

RETRATOS DO ALTO MINHO TRADICIONAL. FOTOGRAFIAS DE BENJAMIM PEREIRA

“O objetivo [de exprimir uma face sintética da personalidade cultural do país] era para nós de um fascínio poderoso, porque teríamos, pela primeira vez, a possibilidade de realizar museologicamente um discurso com a devida coerência expressiva daquilo que eram as marcas mais interessantes da personalidade cultural do país” (1)



Foto: Cláudia Jorge Freire/ http://etnografica.revues.org/

Benjamim Pereira nasceu no seio de uma das mais importantes casas agrícolas de Carreço, a casa da Boroa, e aí viveu num modo de vida rural tradicional até aos 25 anos. A sua ligação à etnografia começou depois de um encontro com Pedro Homem de Melo e Ernesto Veiga de Oliveira, no início dos anos 1950, de que resultou um convite deste último para se juntar no Porto à equipa que, com Fernando Galhano e Margot Dias, veio a integrar o Centro de Estudos de Etnologia criado em 1947 por Jorge Dias.

Esta equipa veio a marcar decisivamente a Etnografia e a Antropologia em Portugal com os seus trabalhos sobre as diferentes formas de viver e visões do mundo que coexistiam no Portugal rural, através de estudos sobre os vestígios da cultura material.

Assim começava aquilo a que Benjamim chamaria “a aventura prodigiosa” e que se confunde com a sua vida.

O trabalho realizado pelo Centro de Estudos de Etnologia continua, ainda hoje, a ser actual e a servir de referência pela qualidade, rigor e inovação dos métodos utilizados e também pela visão programática dos trabalhos desenvolvidos, que viria a culminar na criação do Museu Nacional de Etnologia, em 1965.

A equipa do Centro de Estudos de Etnologia

Contrariar a ideia de um país homogéneo com um povo alegre e satisfeito

O Centro de Estudos de Etnologia desenvolveu o seu trabalho na vigência do Estado Novo em que o discurso oficial, alicerçado num nacionalismo conservador composto de ideias feitas, homogeneizava o país e ignorava o facto de a variedade geográfica resultar em modos de vida e necessidades diversas, adaptadas a condições sociais e culturais específicas. Desta forma desenvolveu a ideia de que se deve procurar na ruralidade a imagem da genuinidade do país, e transforma o campo, com o seu povo alegre, ordeiro e satisfeito, no exemplo a seguir, como António Ferro expressou: “uma pobreza honrada e limpa, que não inveja a riqueza de ninguém (…) um povo que vive contente a rezar, a dançar e a cantar, dando ares de optimismo às cidades fatigadas e pessimistas” (2)

O Minho, por ser a região à qual se colavam as mais apelativas descrições, dava o mote aos discursos poéticos da ruralidade, que depois se estendiam a todo o país.

Em 1947, foi, como já referimos, criado o Centro de Estudos de Etnologia que Jorge Dias dirigiu, a que desde 1959 Benjamim Pereira se juntou.

O trabalho desenvolvido pelo Centro focou-se no conhecimento científico do Portugal real inserido numa perspectiva etnológica universalista, que extravasava o pretenso isolamento e originalidade do caso português, inviabilizando

Percebemos desta forma que este trabalho contrariou a imagem política que o Estado Novo queria construir de um país homogéneo, com um povo satisfeito e alegre. Apesar disso, o seu trabalho teve sempre uma dimensão meramente científica, como afirmou Benjamim Pereira em 2000: “O nosso trabalho não tinha uma dimensão política. A política que nós seguíamos era a de mostrar a verdade, de restituir uma imagem real: Tratava-se de evitar que passasse uma imagem terrivelmente falsificada de um Portugal bucólico e alegre na pobreza persistente. Nesse sentido o nosso esforço foi uma atitude de combate. O que nós queríamos era a dignidade de dimensão cultural. Conhecer o país na sua imensa diversidade”. (3)

No entanto é claro que o trabalho do Centro foi uma corajosa contribuição para desmistificar uma imagem acrítica de um país unificado por uma mediocridade indiferenciadora que representava o país como queria que ele fosse e não como ele realmente era.



As fotografias de Benjamim Pereira

Ao longo das pesquisas e da aproximação ao terreno foi-se tornando evidente que os modos de vida tradicionais estavam a desaparecer, como nos dá conta Ernesto Veiga de Oliveira: “Poderiam ajudar as novas gerações a construir a imagem de um mundo que viveu até então isolado e fechado num sistema ainda integrado da sua ruralidade, com as suas festas e jogos, crenças e símbolos, os seus valores e formas de pensar, de estar e de trabalhar próprias e peculiares e que, contrariamente ao que supuséramos de entrada, se encontra em vias de mutação essencial, para não falar mesmo, talvez, de extinção, mas que é indispensável conhecer para se compreender cabalmente o momento presente” (4). A ideia de que se vivia uma oportunidade única é reforçada por Benjamim Pereira: “O mundo desaparecia – era preciso fazer etnografia de urgência, sob pena de desaparecerem irreversivelmente todos esses testemunhos que explicavam o homem e o presente. Recolher, recolher, recolher. Palmilhar o país (…) conhecer, registar, fotografar, estudar, aprender, reflectir.” (5)

Os trabalhos de Centro desenvolveram-se neste tempo de transição, pelo que a recolha de informação teria de ser o mais exaustiva possível, porque se referia ao que desaparecia e não haveria nova oportunidade de a registar. Por esta razão o rigor e o uso de técnicas que melhor captassem as especificidades, os gestos e os ambientes eram essenciais. Dentro destas formas, o uso da imagem (desenho etnográfico e a fotografia e o filme), numa época em que este recurso não era habitual, teve um papel importantíssimo.

No campo do desenho etnográfico, Fernando Galhano foi um pioneiro cujo trabalho ainda hoje serve de referência; no campo da fotografia foi Benjamim Pereira quem se dedicou com mais interesse: “gostei sempre muito de fotografia., uma das minhas paixões. Eu tinha instalado um pequeno laboratório na casa de banho da Marquesa de Valflor - soberba, essa casa de banho, com azulejos e acessórios arte nova (6)- e tinha um enorme prazer nesse trabalho, porque foi aí que nasceu um sentimento novo: o mistério de uma relação sensível com uma nova linguagem (…)

Eu fazia sobretudo fotografias da vida rural e das práticas culturais, dos acontecimentos. (…) A ideia era usar muito as imagens. Jorge Dias tirava boas fotografias, mas eu tinha outras ambições, eu queria ver sequência como se se tratasse de um filme.

As fotografias não foram usadas apenas como suporte ou complemento ilustrativo mas como um instrumento metodológico de construção e registo etnográfico que nos faculta uma intimidade física mais profunda com as sociedades e as distintas temporalidades por estas percorridas” (7). O registo fotográfico era feito como parte integrante de uma recolha museológica dos objectos, onde as fotografias eram acompanhadas de fichas de inventário com informações sobre o local, data e evento e uma descrição que permite um enquadramento minucioso de cada imagem. Os objectos recolhidos ficavam assim valorizados com informação que mantém a sua ligação aos gestos, ambientes e rituais em que eram usados, mantendo a sua ligação a pessoas, edifícios e paisagens onde eram usados e que são impossíveis de transportar para o Museu

A atenção dada à fotografia por Benjamim Pereira é denunciada pela sua vontade de a transformar numa “nova linguagem”, que bem pode ser a linguagem expositiva das exposições que veio a fazer.

Benjamim Pereira conseguia juntar ao enorme valor documental, que vinha do profundo conhecimento das situações que estava a fotografar, uma enorme sensibilidade que entra no domínio da arte e permite que as imagens tenham uma leitura estética que nos estimula o olhar para outras leituras.

A Exposição

A exposição apresenta fotografias que Benjamim Pereira tirou numa área geográfica definida, o Alto Minho e abrangem um período que se inicia nos finais dos anos 1950 e termina nos anos 1980 e remetem-nos para uma ideia de etnografia de urgência, de registo de um tempo que desapareceu.

É a primeira vez que as fotografias são o objecto principal de uma exposição num museu e pensamos que ao percorrer estas imagens podemos ter uma visão real de vários aspectos da vida rural tradicional no Alto Minho, que se opõe à visão folclórica, encenada e romantizada que foi construída desde o século XIX, que o Estado Novo adoptou e que ainda hoje tem os seus seguidores.

Todas as fotografias aqui apresentadas foram tiradas no decurso dos trabalhos de campo e foram selecionadas pelo próprio autor, de entre as publicações em que colaborou.

João Alpuim Botelho

***Notas:

1 COSTA, Paulo Ferreira da e FREIRE, Cláudia Jorge, 2010, “Uma aventura prodigiosa - Entrevista a Benjamim Pereira”, Etnográfica, vol 14, nº 1, p. 171.

2 António Ferro citado em MARTINS, Moisés de Lemos, GONÇALVES, Albertino (2000), A romaria da Srª. da Agonia. Vida e Memória da cidade de Viana, Gr. Desp. e Cult. Estaleiros Navais Viana do Castelo.

3 WATTEAU, Fabienne, 2000, “Un entretien avec Benjamim Pereira”, Recherches en Antropologie au Portugal, Paris, Groupe Antropologie du Portugal, nº6 p. 20, 21.

4 OLIVEIRA, Ernesto Veiga de, 1984, Festividades Cíclicas em Portugal, Lisboa, D. Quixote, p. 13, 14.

5 PEREIRA, Benjamim, 1990, “Dados biográficos e autográficos de Ernesto Veiga de Oliveira”, Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol 30, Homenagem a Ernesto Veiga de Oliveira, Porto, Sociedade de Antropologia e de Etnologia, p. 13.

6 O Centro de Estudos de Etnologia esteve instalado no Palácio Valflor antes da abertura do museu.

7 WATTEAU, op cit, p. 17.